quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

A pedagogia da maçaneta e a pedagogia da loteria

Ana Bocchini e Braz Nogueira*
Atuando isoladamente a escola não consegue contribuir para a transformação das estruturas políticas, econômicas, sociais e culturais do país. Portanto, pensar a educação não é ilha-la, desconectando-a do sistema socio-político-econômico em que vivemos, da sociedade que queremos.

O sistema educacional não pode se resumir a apenas reproduzir políticas públicas ao chão da escola de maneira aleatória ou meramente consequencial. Tais relações são casuais e representam parte da "crise" educacional que há tempos vivemos. Darcy Ribeiro dizia que a crise da educação nunca foi crise, mas sim um plano para a manutenção dos privilégios de poucos. E, nesse sentido, pensar o fazer pedagógico deve ser encarado como um ato político, não neutro, e construído de maneira coletiva, a serviço da construção de uma sociedade mais justa e democrática.
“[...] A prática educativa de opção progressista jamais deixará de ser uma aventura desveladora, uma experiência de desocultação da verdade’’ (Paulo Freire). E aí chegamos ao chão da escola e suas contradições.
Educação para poucos não é a qualidade, mas sim privilégio. É importante pensarmos a construção coletiva como a potência prática do novo mundo que desejamos viver. No sentido oposto, é comum ver  escolas que não se enxergam enquanto unidade, uma comunidade escolar que viva de fato uma construção em sociedade. Nestas escolas, os(as) educandos e famílias são obrigados a lidar com o que eu, Braz Nogueira, venho chamando de pedagogia da maçaneta. Os (as) professores e professoras, ao fecharem a porta, podem ser excelentes ou péssimos, desenvolvendo a aula que querem frente sua formação e/ou ‘’crença’’, cumprindo metas mínimas de currículo, mas sem estar inserida, muitas vezes, no contexto social daquela escola. Vive-se uma pedagogia solitária, principalmente para aqueles e aquelas que buscam desenvolver uma educação emancipadora e libertadora – disputando outro conceito de escola.
Em outra perspectiva, mas inspirada no termo da pedagogia da maçaneta, eu Ana Bocchini, comecei a chamar esta dinâmica comum das escolas de “pedagogia da loteria”, quando mães, pais e educandos ficam torcendo para que “peguem um bom professor ano seguinte”. Você pode escolher uma escola para seu filho(a), acreditando que é uma escola que está de acordo com seus princípios e ideais, mas pode ter o azar de “pegar um professor” ruim, autoritário, conteudista, que não zele o afeto, a autonomia, horizontalidade e construção coletiva. Ou, pelo contrário, você pode ganhar na loteria e, mesmo em uma escola que esteja longe de ser ideal para seu filho(a), o educador seja uma pessoa afetiva, mediando a construção dos saberes junto aos educandos, estimulando a busca pela aprendizagem significativa. 
Isto é, não podemos continuar vivendo o ciclo da pedagogia da maçaneta ou da loteria. Precisamos repensar a escola como um todo e não em práticas isoladas de educadores - por mais que seja importante, como fator de mediação, a luta de resistência de alguns docentes. Devemos colocar energia para desenvolver um fazer educativo mais plural, valorizando a diversidade de pensamento e o cuidado com as pessoas.
Nós somos ‘’testemunhas de um processo’’, substancialmente, de um modelo escolar fracassado, que precisa ser confrontado e, posteriormente, ressignificado. Uma testemunha não se trata apenas de quem viu algo acontecer em sua origem, mas a partir do momento que tomamos consciência dos constantes absurdos históricos que acontecem nos espaços escolares - e também fora deles - algo precisa ser feito, provocando uma mudança profunda e radical na educação/sociedade. E nós educadores temos responsabilidade maior nisso tudo, pois somos testemunhas e também atores deste processo. A relação dialética entre tomada de consciência e o ser-testemunha é similar as ações pedagógicas que a Alemanha faz no debate sobre o holocausto, fascismo, nazismo, mantendo viva a história para o mundo, de modo que nunca volte a ser repetida. As testemunhas em voga precisam assumir essa responsabilidade, a partir da tomada de consciência.
Não defendemos aqui nem a pedagogia da maçaneta e nem a pedagogia da loteria, mas sim, a educação de qualidade social para todos. Para que este sonho se torne realidade é necessário que todos se articulem, pois a educação de qualidade social não é só tarefa daqueles, ou de alguns, que atuam dentro da escola. Assim sendo, a pedagogia da maçaneta e pedagogia da loteria serão abolidas, pois o bom professor não se resumirá mais às suas qualidades pessoais, serão bons professores todos aqueles que expressarem na sua ação um projeto coletivo.

*Braz Nogueira tem formação acadêmica em Filosofia, História, Pedagogia e especialização em Educação Comunitária. Foi professor de escolas públicas municipais, estaduais e particulares durante 19 anos. Foi Diretor da EMEF. Pres. Campos Salles, localizada na Comunidade de Heliópolis em São Paulo, onde vem atuando há 21 anos com as lideranças da comunidade na busca da efetivação dos direitos da pessoa humana, principalmente o direito à educação de qualidade e o direito à paz. Foi Diretor Regional de Educação Ipiranga (2015-2016) e procurou ampliar para o âmbito da DRE seus valores e sua ética. O foco do seu trabalho é a Gestão Participativa e a Construção da Cultura de Paz.
Em julho de 2015 o Coletivo Escola Família Amazonas (CEFA), o qual integro, organizou um seminário que o Braz foi convidado à palestrar, quando nos conhecemos. Quando chegou a Manaus, Braz se encantou com o que viu, com o movimento dos pais pela busca de uma educação pública de qualidade no coração da Amazônia. Em uma via de mão dupla, o CEFA se alimentou de esperança ao ouvir o Braz. Neste tempo, os autores deste artigo continuam conectados trocando experiências, sempre permeadas pelos princípios compartilhados em suas atuações: Autonomia, Responsabilidade e Solidariedade.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Começando o ensino fundamental...

“Na parede de um botequim de Madri, um cartaz avisa: Proibido cantar. Na parede do aeroporto do Rio de Janeiro, um aviso informa: É proibido brincar com os carrinhos porta-bagagem. Ou seja: Ainda existe gente que canta, ainda existe gente que brinca”.
Eduardo Galeano


Muitas pessoas sabem, intuitivamente, da importância da brincadeira na vida das crianças e vários estudos científicos ratificam esse ponto, em especial, na 1a infância. É, neste momento, quando as crianças já frequentam a pré escola, começam a reconhecer seu próprio corpo, diferenciar cores, tamanhos, pesos, cheiros, quantidades... enfim, a fase CONCRETA. É importante lembrar que escrever e trabalhar com números requerem conhecimento ABSTRATO.

Aos poucos a criança começa a se vestir sozinha, colocar o sapato, comer, se relacionar com adultos e nesse contexto, por uma premissa social, iniciam a saída do seu espaço físico de conforto: a casa.

Estudos também apontam que nesta fase as crianças precisam se alimentar bem, dormir bem, e viverem plenamente numa atmosfera de carinho e afeto. Estes pontos são mais importantes do que uma série de estímulos cartesianos, que muitas vezes acabam prejudicando seu desenvolvimento, por enxergarem demasiadamente a criança como um projeto de adulto. Não se respeita o tempo, nem a individualidade de cada ser, mas paralelamente se cria o universo de expectativas de como a criança tem que existir no mundo, atropelando em muitos momentos, seus passos espontâneos e autônomos.

Em 2010 o Ensino Fundamental (EF) I que começava aos 7 anos, passou a ser iniciado aos 6. Isto é, o 1o ano de EF, a 1°série para os mais velhos, antecipou o processo de alfabetização das crianças. E qual impacto disso na construção cultural e social das famílias?

É fato que a alfabetização pode se dar em ritmos diferentes, inclusive no 1° ano do EF, mas as escolas particulares, definidoras da competitividade e da lógica meritocrática, insistem em adiantar mais ainda este processo, alfabetizando crianças com 4 e 5 anos. Fica a dúvida: futuramente, iremos viver um processo de alfabetização desde a gestação?

                                        

Alguns relatos de pais que têm seus filhos em escolas particulares de Manaus dizem que crianças de 4-5 anos tem páginas e mais páginas de tarefas para fazer, ficando muitas vezes até 22:00h da noite "estudando". Estas crianças ficam com raiva daquilo que era para ser a coisa mais maravilhosa do mundo: A curiosidade e o conhecimento. É complexo ver as famílias reproduzindo, em diversos casos, a mesma educação castradora que receberam no sistema tradicional escolar, seja por uma questão cultural, social, seja pela falta de opções de iniciativas alternativas de educação.

O ciclo de absurdos continua quando escolas particulares fazem testes para os alunos ingressarem no 1°ano. Dizem que é uma prova de nivelamento, mas estranhamente aqueles que ficam com nota abaixo da média não conseguem vagas.

Neste contexto, em conversas com algumas mães e pais, transcrevo aqui alguns relatos que ouvi das vivências de seus filhos em testes para ingressar no 1º ano do Ensino Fundamental:

“Minha filha de 6 anos fez um teste com duração de mais de uma hora e a professora (freira) que estava na sala a agrediu verbalmente dizendo que ela não sabe fazer nada direito...”

“O teste que minhas filhas gêmeas de 5 anos fizeram foi com letra cursiva, pois nesta escola não ensinam letra bastão. Minhas filhas ainda não sabem a letra cursiva, então não passaram no teste”.

“Gostei deste teste, era simples, só uma página, mas minha filha tirou 6,0. A média era 7,0. Como já tenho outra filha nesta escola eles deixaram eu matricular após eu assinar um termo me responsabilizando por ensinar a criança (e a criança aprender!) certos conteúdos até o início do ano letivo”. 

“Me explicaram que se a criança não passar no teste, teremos uma reunião para estabelecer algumas condições para poder matricular”

“Só tem 7 vagas e cerca de 140 candidatos. Eles cobram R$ 100,00 para fazer o teste, mesmo sem a garantia de que conseguiremos matricular...”

As crianças deveriam começar a aprender a ler e escrever no 1° ano, no entanto, exige-se que elas já o saibam antes de ingressar. Estimulam a competitividade entre candidatos de 5 e 6 anos de idade, colocam pressão em famílias que estão ansiosas com esta nova fase dos filhos(as).

O mundo está doente, muito doente...

Formamos pessoas cada vez mais máquinas – jovens que podem até dominar alguns conhecimentos formais, historicamente produzidos, mas infelizmente não desenvolvem maiores níveis de criticidade, autonomia, criatividade, trabalho em equipe e suas potencialidades. O pior, cada vez mais, o projeto de máquinas começa mais cedo.